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22/03/2022 •

Evolução do mercado e da regulamentação dos Esports no Brasil

Fonte: Análise Editorial

Por André Sica, sócio, e André Thomas Fehér Junior, associado; ambos da área de Esporte, Entretenimento e E-Sports do CSMV Advogados

Os números que o mercado de esports geram no país são vultosos. Recente pesquisa da principal fonte do setor — a Newzoo — aponta o status do Brasil como terceiro maior mercado do mundo. O país possui uma audiência anual de 18.6 milhões de entusiastas assistindo competições dos mais diversos games, bem como uma receita gerada com a venda de jogos eletrônicos no montante de US$ 1,2 bilhão. São números que vêm crescendo em progressão geométrica desde 2011, ano que marcou a chegada das desenvolvedoras de jogos eletrônicos Valve e Riot Games ao Brasil.

Em razão da evolução dos números de transmissão, de engajamento da comunidade e dos praticantes no país, foi necessária também uma melhoria na infraestrutura para a prática da atividade dos esportes eletrônicos no Brasil, bem como na exposição de produtos e serviços atrelados a este mercado.

Da mesma forma, a aplicação do Direito aos Esports começou a enfrentar desafios até então desconhecidos. Até meados de 2016, o mercado de esports possuía uma lacuna de regulamentação, trazendo insegurança às discussões jurídicas das relações entre os players do mercado e à construção da formalização de negócios em geral.

Com isso, os principais atores do mercado de esports, principalmente equipes e cyber atletas, buscaram o entendimento sobre como eram enquadrados juridicamente. Os clubes, àquela época, mantinham apenas contratos de patrocínio ou de licenciamento de uso de imagem junto aos atletas — uma vez que a imagem era muito explorada em canais de mídia e redes sociais; porém, sem a preocupação de que a relação existente, em muitos casos, possuía também um vínculo laboral.

Nesse sentido, é possível dizer que a construção da jurisprudência — conjunto de decisões judiciais — foi essencial para a definição de pontos fundamentais na aplicação do Direito aos esports, assim como na confirmação de seu enquadramento jurídico.

O primeiro caso emblemático que chamou atenção envolvia um atleta do jogo League of Legends, da equipe KaBuM! eSports, que teve o reconhecimento do vínculo empregatício com a aplicação da Lei 9.615/98, conhecida como Lei Pelé.

Tal decisão foi importante para se compreender que as atividades praticadas pelos cyber atletas, além do vínculo empregatício, se enquadram nos requisitos de uma atividade desportiva, principalmente pela presença da natureza competitiva. Mesmo apresentando diferenças em relação às demais modalidades tradicionais, como o futebol, ao se debruçarem sobre o tema, diversos especialistas da área de educação física — em território brasileiro e internacional — se posicionaram categoricamente, classificando os esports como esporte.

Ao se depararem com esse novo contexto, os principais clubes de esports buscaram entender junto ao Ministério do Esporte se a sua atividade seria reconhecida ou não como um esporte e qual seria a legislação aplicável. Após tal provocação, no parecer jurídico de 91/2015, o Ministério do Esporte manifestou-se no sentido de que o “esporte é um direito social, não cabendo às leis reconhecer a existência ou prática dos mesmos (sic), apenas fomentar a sua prática, independente da modalidade escolhida”.

Entretanto, mesmo sem o reconhecimento expresso do Governo, que de é fato desnecessário, o reconhecimento tácito veio de diversas formas. O Ministério do Trabalho passou a conceder visto de trabalho aos jogadores estrangeiros de esportes eletrônicos, na qualidade de “atletas”. Já o próprio Ministério do Esporte passou a aceitar e aprovar projetos nas modalidades de esports dentro da Lei de Incentivo ao Esporte (Lei nº 11.438/06).

Com essas claras manifestações de entendimento, o mercado como um todo passou a se organizar e a adotar a corrente que levava os esports para o caminho das demais modalidades esportivas.

A partir de então, os clubes passaram a formalizar suas relações junto aos atletas por meio de contratos especiais de trabalho desportivo para prever as relações decorrentes da prática das atividades de atleta profissional competitivo, e em paralelo, instrumentos de licenciamento do uso de imagem para regular as atividades de exploração junto a canais de mídia; ambos fundamentados com base na Lei Pelé.

Além disso, as próprias desenvolvedoras dos jogos eletrônicos passaram a assumir mecanismos conhecidos em outras modalidades esportivas tradicionais, a exemplo das janelas de transferência de atletas (período de tempo determinado em que os atletas podem ser transferidos entre os clubes), para que fosse possível o intercâmbio dos jogadores entre os clubes com uma maior transparência e segurança.

Como consequência dessa autodeterminação, o mercado se posicionou de forma mais atrativa às empresas patrocinadoras, investidores e desenvolvedoras dos jogos eletrônicos com a definição de parâmetros para campeonatos.

Porém, apesar da aplicação da Lei Pelé na relação entre clubes e cyber atletas, foi possível identificar outras carências e lacunas legislativas nas relações entre os demais players do mercado de esports.

As desenvolvedoras de jogos eletrônicos (publishers) passaram a exigir diversas contrapartidas aos clubes e atletas para a participação de suas competições, e ao mesmo tempo, limitar algumas atividades que contrariassem suas políticas de uso do jogo. Afinal, vale destacar que os jogos eletrônicos possuem algo extremamente distinto da maioria das modalidades tradicionais: a propriedade intelectual do jogo eletrônico.

Como desafio ao operador do Direito, foi necessário aplicar outras leis na relação entre os agentes do mercado de esports, tais como a Lei 9.610/98 – Lei de Direitos Autorais e Propriedade Intelectual, ao tratarmos de direitos decorrentes do jogo eletrônico. Outrossim, como forma de regular as relações de consumo incidentes neste mercado nas relações de prestação de serviços, foi fundamental a aplicação do Código Civil e do Código de Defesa do Consumidor.

Não menos importante, a pandemia ocasionada pela Covid-19 em 2020 gerou novos desafios na regulamentação do mercado. A suspensão de torneios presenciais de League of Legends, como o CBLoL e o Circuito Desafiante, organizados pela publisher Riot Games, fez com que a adaptação a diversos novos meios de comunicação e tecnologia acelerasse o processo de uma nova forma de desenvolvimento desse esporte. A boa notícia é que, naquele momento, o mercado de esports talvez fosse o mais preparado para absorver os novos conceitos de distanciamento social e prática não presencial.

Nesse sentido, ao invés de se preocuparem apenas com regulamentos e a transmissão dos campeonatos, já que as demais ações eram controladas presencialmente, as desenvolvedoras tiveram a necessidade de se proteger contra episódios de fraude à nova tecnologia. Como exemplo, foram registrados casos em que cyber atletas trocaram de conta durante as competições sem a autorização das publishers e, até mesmo, inseriram hardwares que tinham como objetivo um melhor desempenho desportivo nas partidas — o doping digital.

Para solucionar e garantir a estabilidade nas competições, as desenvolvedoras passaram a licenciar os jogos eletrônicos para empresas organizadoras de competição, popularmente conhecidas como ligas independentes, que contribuíram para a criação e o aprimoramento de regras e ambiente de disputas.

Não por acaso, sistemas anticheating, plataformas de tecnologia de última geração e regulamentos de proteção de dados, entre outros mecanismos de tecnologia, passaram a ter ainda mais evidência nesse mercado, tendo sido adotados de início pelas ligas independentes. Logo, foi necessário um cuidado ainda maior pelo operador do Direito ao se preocupar com a aplicação de outras legislações, como a Lei 13.709/2018, conhecida como Lei Geral de Proteção de Dados.

Essa breve perspectiva histórica revela uma rápida evolução da aplicação do Direito ao ecossistema dos esports. Se em um primeiro momento havia insegurança, inclusive quanto ao seu melhor tratamento jurídico, atualmente não restam mais dúvidas acerca de seu enquadramento como esporte, conforme consolidado pela jurisprudência e pela doutrina.

Isso não significa, contudo, que os desafios tenham se esgotado; pelo contrário. O pleno desenvolvimento do sistema competitivo e a crescente atração de investimentos desafiam constantemente o operador do Direito a construir um conhecimento simultaneamente especializado, com expertise no segmento, e multidisciplinar, capaz de atender às necessidades de cada um dos diversos stakeholders do ecossistema.

Diante da característica inovadora deste segmento e do desenvolvimento em altíssima velocidade, não há dúvidas de que as atuais demandas jurídicas relacionadas aos esports são absolutamente distintas daquelas de dez anos atrás. Tampouco serão iguais às que surgirão na próxima década, ainda mais considerando os novos conceitos de Metaverso, Web3 e NFTs, que estão adentrando de maneira sinérgica o mercado dos esports.