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04 de maio de 2022 •

Análise prática e atual da tributação do futebol

Fonte: Estadão

Com o objetivo de obter maior transparência, eficiência e racionalidade, há mais de uma década se discute na sociedade civil e no Congresso Nacional a necessidade de mudanças na estrutura jurídica do futebol profissional. Uma das principais pautas tem sido a criação de regras que incentivem os clubes a substituírem o regime de associação sem fins lucrativos pelo de empresas. Pois bem, é de conhecimento geral que foi recentemente aprovado o instituto da Sociedade Anônima do Futebol – “SAF”, instituído pela da Lei nº 14.193/21, com regras mais modernas e claras de governança, diminuição de passivos, bem como um regime especial de tributação (Tributação Específica do Futebol – “TEF”), entre outras medidas.

Analisando tão somente o aspecto tributário, veremos que a carga tributária estabelecida no TEF é muito próxima da carga atual das associações. A similaridade não é por acaso: a ideia foi justamente permitir que as diversas alterações legais indutoras da transformação de associações em empresas não esbarrassem na questão fiscal (a carga tributária é o deal braker  por excelência em reestruturações societárias). Por outro lado, algumas receitas, antes não tributadas, passaram a compor a base de tributação das SAF em prol de uma maior justiça fiscal.

Um clube de futebol, não importa se na forma de associação ou SAF – ou, nada impede, sociedade empresária “tradicional” – tem sido historicamente capaz de gerar as seguintes e mais recorrentes receitas operacionais: a) Direitos de transmissão de partidas; b) Licenciamento, publicidade, propaganda e patrocínio; c) Bilheteria; d) Programas de sócio-torcedor; e) Premiações de competições; f) Compra e venda de direitos econômicos sobre atletas.

A tributação dessas receitas varia essencialmente em função da composição da base de cálculo e da respectiva alíquota aplicável em relação a cada tributo incidente.

As associações sem fins lucrativos recolhem 5% de contribuição previdenciária sobre a receita bruta da soma dos itens a + b + c acima, em substituição da contribuição patronal de 20% sobre folha de salários, à qual a grande maioria das empresas se sujeita. Como associações, os clubes recolhem, ainda, 1% de Contribuição para os Programas de Integração Social e de Formação do Patrimônio do Servidor Público (PIS/Pasep) sobre a folha de salários. Para as associações, os itens d + e + f não sofrem tributação. Também há isenção do Imposto sobre a Renda das Pessoas Jurídicas (IRPJ), da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) e da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins).

Para as novíssimas SAF, como dito, vigora o TEF. Neste regime, nos cinco primeiros anos de existência da do “clube empresa” há incidência de 5% sobre a base composta por a + b + c + d + e (ou seja, exclui-se apenas as receitas de direitos econômicos de atletas); a partir do 6º ano, soma-se a esta base o item f, reduzindo-se, em contrapartida, a alíquota, que passa a ser de 4%. Esta carga compreende os seguintes tributos: IRPJ, CSLL, COFINS, PIS, contribuição previdenciária patronal e RAT.

Há, ainda, a possibilidade de um clube constituir, ou de se transformar, em empresa sem o formato de SAF, seja uma limitada ou outro tipo societário, contribuindo no formato de que estão sujeitas empresas de outros segmentos – lucro real ou presumido, e com isso atrair a respectiva tributação. Em razão do porte e dos patamares de receita dos clubes de Série A do Campeonato Brasileiro, por exemplo, teríamos obrigatoriedade de apuração pelo lucro real, e com isso considerarmos IRPJ/CSLL de 34%, e PIS/COFINS não-cumulativo de 9,25%, além da contribuição previdenciária.

Vale pontuar que, seja como associação, seja como SAF ou empresa comum, todos teriam o mesmo tratamento para fins de Imposto Sobre Serviços (ISS) e contribuições de terceiros (4,5%).

Portanto, comparando as opções existentes, se de um lado a SAF atrai uma maior base de cálculo em relação à associação, sua alíquota é inferior a partir do 6º ano de sua existência, e não há o PIS de 1% sobre a folha de salários, fator que costuma ser relevante para times de futebol profissional.

Apenas no que diz respeito ao aspecto fiscal – desprezadas as outras variáveis, tais como de governança, compliance, captação de recursos/sócios etc. –, o clube associação deve avaliar se as receitas advindas do programa sócio torcedor, as premiações e a compra e venda de jogadores, juntas, seriam suas principais fontes de receita: de uma maneira geral tais receitas são relevantes, mas dentro do orçamento dos principais clubes não são mais relevantes do que a soma do direito de transmissão, licenciamento, patrocínios e bilheteria. Isso implica que a tributação na SAF pode ser maior do que na associação, considerando-se sobretudo os anos em que pontualmente ocorram mais premiações e vendas de jogadores; todavia, é um acréscimo marginal se considerada a receita bruta projetada de longo prazo, ainda mais se contrastado com o potencial de geração de novos negócios e aportes financeiros que a SAF tende a viabilizar e que são cronicamente inviabilizadas para os clubes engessados no formato de associação sem fins lucrativos.

Também não seria adequado tributar a atividade do desporto como uma empresa qualquer, dadas as características únicas do setor e a realidade da imensa maioria dos clubes brasileiros. Em diversos lugares do mundo com tradição futebolística, a tributação indistinta do futebol provocou o fracasso de uma indução bem-sucedida e duradoura ao profissionalismo (citamos a Argentina), e/ou enfraqueceu o esporte como um todo ao polarizar, de um lado, times que foram dragados para o formato de empresa com elevada carga tributária, e, de outro, clubes associações fortes (“times grandes”) que resistiram à transformação e seguiram com carga tributária inferior (citamos a Espanha).

Ao menos neste aspecto, podemos adiantar que o modelo brasileiro foi adequado ao trazer certa neutralidade em termos de carga tributária entre associação e SAF. Aguardemos os próximos anos e o desenrolar prático da aplicação da nova lei em todos os seus aspectos a fim de avaliarmos se foi alcançado o objetivo maior de transformar para melhor o futebol brasileiro.

*Flávio de Haro Sanches é sócio do escritório CSMV Advogados. Especializado em Direito Tributário com ênfase em consultoria de indiretos, contencioso administrativo e judicial. Também atua nas áreas de Imposto de Renda, Aduaneiro e Previdenciário. Formado pelo Mackenzie, especialista em Direito Tributário pelo IBET e em Imposto de Renda das Empresas pela APET. Cursou o “Introduction to the American and International Law” do “Center for American and International Law – Dallas / Texas”. Juiz do TIT/SP no biênio 2012/2013 (contribuintes)